quinta-feira, fevereiro 20, 2014

Filhos do acaso



-Filhos do Acaso -

Acaso sabem que nada acontece por acaso? Acaso sabem que por vezes o avesso é o lado certo? E que depois de um circulo não está necessariamente o mesmo lugar?
O Acácio sabia.
Sabia mas não dizia. Guardava o sentimento sempre para outro dia, talvez porque no fundo não sentia. Não sei, como já disse, o Acácio sabia. Mas ali andava, a fingir que vivia.
Ia o Acácio, muito dono do seu estilo, a pesar a sua vida, mais ou menos quilo, quando deu por mim, triste e intranquilo.
- Então? Não lhe dás vazão? Disse-me ele como se não soubesse que o meu problema era o coração, comigo ali solene, de bandeira na mão.
- Não – respondi de antemão- que as coisas da vida não são regradas pela razão!
O Acácio riu, e antes de o mandar para a puta que o pariu, ele retorquiu:
- Eu vi o que ninguém viu e ouvi o que ninguém ouviu. Sei tudo, desde o nascimento do universo ao tacto do veludo, sei tudo, e conseguia contar mesmo que fosse mudo…
O Acácio sabe, pensei, perante isto amansei, tudo o que o Acácio diz é lei!
…eu sei! E perante toda a verdade nunca chorei.
Ia saber todas as respostas ao meu problema –sonhei- resolver todo o meu dilema!
E depois deu-se o facto. Agitar frenético a bandeira foi o meu único acto.
Labor chato o meu, avisar do comboio que aqui passa de jacto.
Fiquei sem conhecer a solução para todos os problemas do coração.
Sabia que aí vinha o comboio.
O Acácio não!?

Chega

Só depois de viver à míngua
E tanto sangue nos escorrer da boca de tanto morder a língua
Vamos gritar chega?
Só depois de chorar
Por saber que agora será morrer ou matar
Vamos gritar chega?
Só depois de morrer
E aí saber que é impossível volver
Vamos gritar chega?
Só depois dos nossos idos avós
Em pó se sentirem mais vivos que nós
Vamos gritar chega?
Só depois dos pés sangrentos se arrastarem descalços no chão
E toda a humanidade sentir que viveu em vão
Vamos gritar chega?
Só depois dos fetos se recusarem a nascer
E os velhos do povo se negarem a morrer
Vamos gritar chega?
Só depois de nada senão teias
Nos correrem amargas nas veias
Vamos gritar chega?
E mesmo agora que gritar com a boca em sangue
Se gritar chega para tornar-la estanque
Com o estomago vazio que não sossega
Numa mentira de justiça cega
Será agora suficiente gritar chega?

Rui Henriques

Arte

A arte será sempre feita pelo que nos compõe. Podemos dizer sempre que não, que não é consciente e depois culpar aquele estranho rosto que nos olha do espelho. Podemos fecha-la numa muralha de tela, ou perde-la em linhas obtusas de outro alguém que não nós. Podemos culpar a objectiva ou o ónus da luz. Podemos fazer e dizer tudo o que nos afasta da sua criação, como se realmente jamais tivesse feito parte de nós. Podemos também rotula-la e chamar-lhe um qualquer nome cujas características se assemelhem a uma outra criação e dizer (e sentir) que o que concebemos faz parte de um grupo mesmo correndo o risco de lhe tirar individualidade. Podemos até nega-la e com isso negar que outros lhe deem nomes que não lhe pertence. Mas a Arte, seja ela feita do que for, terá sempre um nome próprio, dado no exato momento em que a concebemos como parte intrínseca do que somos mesmo que o seu conceito seja diametralmente oposto ao que acreditamos, e assim será o seu oposto. A Arte terá sempre a exata dimensão da imaginação, sem nome, sem limite, individual.

Rui Henriques

domingo, outubro 11, 2009

A Lápide





        

             A lápide dizia « Quando deixares de ver os pássaros a voar para lá do o horizonte, não te preocupes, eles continuam a voar» Acho que não tem erros, pensou. A frase havia-a copiado de um livro, encostou a foto da amiga falecida ao livro e perguntou o que ela queria na lápide. Abriu o livro e na face par e o livro respondeu. Na ímpar ,simplesmente não leu.

« Quando deixares de ver os pássaros a voar para lá do o horizonte, não te preocupes, eles continuam a voar»

Estava escrita em tinta de borracha, de modo algum adequado para mármore, confirmou consigo mesmo este facto e passou a mão ao de leve pelo trabalho, está seco e dura dois Invernos, pensou. Eram os dois pedaços de pedra de maiores dimensões que encontrara nos montes de sobras da pedreira, lisos nas duas faces, grandes o suficiente para pensar serem o que restava de uma igreja. Com a ajuda e cara de estranheza do condutor de autocarro trouxe a lápide para casa, colou um sobre o outro e pintou tudo com sobras de tinta.
E que orgulho em cada uma das suas irregularidades. Abraçou-a e levantou-a inteira.
E abraça-la e levanta-la inteira foi o que fez, vezes sem conta, enquanto subia a comprida rampa que levava ao cemitério, que nunca parecera mais íngreme. Tinha agora quatorze anos, um corpo franzino que o parecia mais ainda enquanto carregava aquele peso (ninguém lhe via a alma, essa, leve como uma pena!), o presente ideal de despedida. A amiga morrera à pouco num acidente. Com ele na escola pouco mais que uns olhares (diz-se de admiração, não sei), talvez uns desenhos e umas frases, portanto, lembrou-se, portanto, ela dizia muito portanto, mesmo antes de dar uma explicação, portanto.

« Quando deixares de ver os pássaros a voar para lá do o horizonte, não te preocupes, eles continuam a voar»

Encostou a lápide na esquina do grande portão do cemitério e espreitou. A mãe ainda estava ali, uma semana passara e a mãe ainda ali, triste e incrédula. Sentou-se em descanso e deixou o tempo correr. Uma viagem tão penosa não podia correr o risco de o não deixarem despedir-se, indagou consigo.
A mãe passou por ele, umas horas depois, rendida, ainda em lágrimas, em silêncio. Ele agarrou no mesmo silêncio, olhou para o caminho estreito entre as campas que teria de percorrer e levantou a lápide. Num esforço lento de orgulho e penitência carregou de uma só vez, encostou a pedra à campa e devagar, deitou-a. Levantou-se vagaroso, olhou em volta para lhe identificar companhia e baixou a cabeça, em silêncio.
- Portanto! (sorriu)Portanto, na segunda-feira temos teste.

Já não dava para ver depois do muro na linha do horizonte, não sei se chorava. Sei que continuou a andar.
Chegou...
como seria de esperar
trouxe na sua fragância
o segredo da infância
da inocência do olhar

Mas eu sabia quem era
não é a primeira vez que a vejo
mal ela sabe (quem lhe dera!!)
que um dia já foi desejo

Chegou pois, impaciente
como uma faena num poema
olhar de demente, de pura serpente
sorriso de iena

-Sou a morte, e vim para te buscar
mas tiveste sorte, vai outro no teu lugar

- Vai à merda !!- disse-lhe eu
quem tu queres já morreu
se desejas algum corpo
leve então o meu

Pensas que és negra
escura como breu
mas eu tenho uma regra
-NINGUÉM É MAIS NEGRO QUE EU-

Anda, não sabes o que tenho aqui
vou-te levar a uma história
num canto da minha memória
em que eu próprio já morri
anda
à lugar para ti

Anda... vem
Pensar que és dor e podridão
pensas que matas com devoção
vou-te tratar com desdém

Anda, Morte de colossos
Vou-te mostrar que és ilusão
vais senti-lo na carne, no sangue, nos ossos
vais sentir toda a dor
vais provar do teu horror
anda
eu sou a tua própria escuridão
eu sou o teu caixão
anda

sábado, dezembro 22, 2007

- Maiores 18

-História dos maiores 18 palhaços à face da .... Terra?

___________-FALTAM CARTAS NO BARALHO -

_ Ao mar, por ter deitado, vincáro, no madeiro justante, outro madeiro... pouco a pouco, eminente estrangeiro, salvo à terra nos estranho... . Início foi também a guerra do Golfo, daqui Artur Albarran, directamente do século dois mil, da ilha dos vénus sevidos, crásca frós crásca big love.
Fil fechou o livro com estrondo e olhou fixamente para o estranho grupo que se afigurava na sua frente. Havia realmente de tudo um pouco, como se aquilo não fosse mais um encontro de velhos conhecidos e sim um aglomerado de extra terrestres . Eu estava com olhos fixos numa tela em branco mas não pude deixar de reparar nas palavras deste meu estranho amigo .
_ Fil, essa merda ainda te vai dar cabo da cabeça, só tu conseguias ler Os Lusíadas por essas palavras, estás com a mesma moca há mais de uma semana e agora começas a atrofiar com a porcaria do livro. O gajo olhou para o dito com uma cara que julgo só ser comparável com um peixe de aquário. _ Porra índio, estava mesmo aqui escrito, tirando uma ou outra letra que não parava quieta. E começou a procurar aquela inconcebível lengalenga.
No recanto menos iluminado do meu atelier, o Eduardo, um tipo alto de mais para os seus quinze anos, encolheu-se assim que reparou que eu o olhava. Deixei que ele se refizesse do susto e perguntei-lhe :
_ Ouve, se eu não te conhecesse á tanto tempo diria que estás a evitar que te chova em cima.
Infelizmente ele não deve muito à inteligência, então passado um minuto, que eu humildemente lhe concedi, respondeu :
–Népia índio, estava só a pensar aonde nós íamos hoje à noite.
_A pensar hem ? bom, se és tu que estás a pensar onde vamos hoje, amanhã falamos. E deixei-o com os seus prelados, confiante que ele só iria entender daí a uns dias.
Na secretária, literalmente em cima dela, estava o Pedro, um tipo que passava o tempo a escrever, ou a brincar com a caneta enquanto não lhe vinha inspiração. Era de uma estatura baixa e sentado assim na secretária com as pernas cruzadas com o cabelo a tapar-lhe a cara, confundia-se facilmente com uma estranha escultura, aliado ao facto de quase não se mexer há mais de cinco minutos.
– Então Pedro, vais escrever ou mexer com a caneta ou dizer qualquer coisa, porque estou pronto a ir confirmar se ainda respiras.
O Pedro desceu à terra e deixou de parecer um vegetal, olhou para a caneta por um momento e levantou os olhos para mim.
_ Meu , estou a ter uma branca. - Disse:
_ Népia puto, é mesmo a cor da folha à tua frente.
Deu-me um sorriso amarelo e respondeu:
_ Essa tua ironia ainda te vai matar, palhaço..., não consigo pensar com clareza, é esta merda de secretária que não deixa um gajo se sentar como deve ser.
Bom, achei por bem não fazer sequer um comentário sobre o facto do uso correcto de uma secretária, pois sei por experiência o quanto é lixado uma cabeça sem ideias, sem contar com o Eduardo claro, esse, mesmo de cabeça vazia é um gajo bacano. Então limitei-me a dizer:
_ Pessoal, vamos sair daqui antes que comecemos todos a atrofiar.
Foi então que me dei conta da Ana, que até agora não se tinha mexido ao ponto da minha humilde pessoa não se dar conta da sua presença.
_ Vamos onde malta? Disse ela naquela voz doce e entaramelada que temos ao acordar.
_ Viva viva, quem está vivo sempre aparece. Respondi eu enquanto concebia a sua presença, pois com o passar das horas julguei que ela já tinha saído. E diga-se de passagem que a figura da Ana era tudo menos de provocar o esquecimento. Tinha o cabelo de um castanho b
rilhante e uns olhos com uma tonalidade de azeitona cativantes. Tinha adormecido ao cair da noite, e o passar das horas tinha provocado em mim a sensação de que ela já não estava. Esperei que se

levantasse enquanto olhava para aquele corpo que se espreguiçava e deixei-me levar por aquela visão enquanto fazia uns traços na tela. Então a visão falou:
_ Vamos sair ou vais continuar a alimentar o impossível ?
Com aquela indiscutível observação dei por finda a minha divagação e limitei-me a gritar._ Pessoal, marchar. Que é um dos tais comentários idiotas que nos vemos obrigados a dizer de cada vez que nos dão a entender a nossa insignificância.
Dei um calduço no Fil que já tinha adormecido com a cara no livro e caminhei para a porta, enquanto ele estrebuchava por as palavras não pararem quietas ignorando-me completamente, mas não consegui evitar dizer que as palavras com o passar das horas acabariam por adormecer nas mesmas proporções que ele as havia encontrado.
_ Porra índio, se não fosses tu ninguém acreditava em mim.
E saímos para a rua comigo a pensar o quanto ele estava certo pois com o passar dos anos cheguei à conclusão que tudo o que o Fil dizia ou fazia já não era pela eterna moca que ele tinha mas sim mero facto de nascimento.
Aquele grupo a descer a rua rumo à velha vila de Sintra era tudo menos natural. Eu, de estatura média e magro como um palito, com os óculos de aros rachados pelo nariz que faziam lembrar o Papillon, e de mãos nos bolsos, indiferente de olhar no horizonte como se não fizesse parte daquele grupo, como se não notasse o facto do Eduardo vir a gritar-me aos ouvidos, e ele, com o andar suave de um rinoceronte, rodeava-me como uma bailarina enquanto me dizia que tinha uma ideia genial, que era a ideia do século ...
_ Eduardo, é de certeza a tua ideia do século, porque é a única ideia que vais ter este século.
Ele calou-se por momentos sem perder aquele sorriso que tinha desde que o conheci, e diga-se que sempre o vi assim, mesmo quando perdeu cinco dentes e partiu o nariz num acidente na serra quando subíamos ao castelo dos mouros pelas escarpas laterais.
_ Vá lá índio,- retorquiu ele - ouve só o que eu tenho para te dizer. E juntou as mãos numa atitude de clemência de uma forma que eu não lhe reconheci, o que fez com que eu lhe desse alguma atenção.
_ Tem calma meu, quando chegarmos á vila falamos, todos
juntos, como manda o figurino, está bem?
Pelo silêncio dele só podia tirar duas conclusões. Ou ele não sabia o que era o figurino ou tinha compreendido e ia demorar meia hora a esquecer a ideia do século; assim, uma ou outra para mim chegavam.
A paz voltou ao grupo enquanto contornávamos a volta do duche, que era a curva contra curva mais histórica da vila de Sintra, com a sua paisagem verde e o castelo e o palácio e as esculturas e o picadeiro e o Fil que viu um camone pousar uma câmara de vídeo e sem aviso prévio começou a correr com ela debaixo do braço.
_ Merda Fil, o que é que estás a fazer? Gritou a Ana enquanto o via-mos desaparecer no muro do parque municipal que ficava adjacente á estrada do duche.
Não demorou muito até aparecer uma dupla de azuis de cassetete em punho, que se acercaram de nós em posição de ataque iminente.
_ Catraios dum raio, que bós bindes a fazer asneiras á demasiado tempo.- Disse o que tinha ar de mais inteligente, e digo-vos que tive muita dificuldade em distingui-los, fi-lo apenas porque um falava e o outro grunhia.
_ Senhores agentes - disse eu no meu ar mais cavalheiro- creio eu que o facto de nos encontrarmos ao lado do papa não nos torna santos, assim, julgo eu que por nos encontrarmos ao lado de tão ignóbil criatura, que diga-se em abono da verdade, não faço ideia quem seja, que subtraiu a câmara a tão distinta figura, que também não conheço de lado nenhum, não nos faz pois, delinquentes de qualquer espécie.
Foi a última coisa que eu me lembro de dizer antes de sentir uma dor bem por baixo do nariz que me fez sonhar que estava numa esquadra de policia e incrivelmente me fez acordar numa.
_ Merda, que dor de cabeça, como é que vim parar a esta
adega? - Não era uma adega, era só o bafo do azulinho fardado que estava á minha frente.
_ Bós bindes aqui brincar fodeibos, á fodeibos fodeibos.
_ Porra, onde é que está o botão de tradução automática?
Alvitrei eu estupidamente.
_ Ó Gomes, binde aqui catano, que temos aqui um espertinho.
Merda, se não mantenho a boca fechada o Pedro vai acabar por ter razão e eu não saio daqui hoje.
O tal Gomes era um tipo alto como uma porta e com uma cara igual a uma porta, o que me fez imaginar a levar literalmente com uma na cara. Então o nariz de maçaneta berrou qualquer coisa incompreensível, mas pelo olhar compreendi que tais palavras não figuravam no dicionário.
Então limitei-me a ignorá-lo pois podia ser que com a força do pensamento ele realmente desaparecesse.
Não desapareceu.
E depois de uns carinhos que os senhores guardas tão atenciosamente providenciaram, decidiram ofertar-me com a melhor suite do hotel, onde, antes de recolher aos meus aposentos ainda consegui balbuciar :
_ Que lindo quarto Sr. Agente. Diga-me, para eu caber aqui, onde é que tiveram que arrumar as pipas?

Diga-se que nunca tinha adormecido com o corpo tão quente, são muito calorosos quando querem estes senhores .
Acordei no dia seguinte com a ideia de que o comboio que me tinha atropelado viesse dar uma segunda demão, e olhei em volta para confirmar o paradeiro do resto do pessoal. Ninguém, estava só e não ouvia quase som nenhum, tirando uma máquina de escrever bem ao longe e as notícias difusas de uma rádio qualquer. Passou talvez uma hora até que comecei a ouvir uns passos que se aproximavam.
_ Bom dia senhor doutor, então, dormiu bem?
Era um gajo com tantas patentes e tão poucos ombros que julguei que tinha se esquecido de tirar o cabide das costas.
Abstive-me de comentar a observação e respondi:
_ Bom dia senhor general.
Porra, a ultima vez que tinha visto algo inchar assim foi no lançamento do balão no adro da igreja.
_Não rapaz, não sou general, sou o Chefe Máximo Distrital Para Os Assuntos Relacionados e Autónomos Das Directrizes Imputadas Nos Códigos Nacionais De Conduta E Afins .
Devem compreender que talvez não tenha dito bem assim, mas também quem é que consegue dizer aquilo duas vezes seguidas?
_Muito prazer, eu sou A Alta Autoridade Para Os Assuntos
Relacionados Com Ouvintes De Chefes Com O Nome Demasiado Comprido Para Ser Decorado... deseja consulta ?
O cabide ambulante pôs-se a balançar na ponta dos pés e pondo as mãos atrás das costas começou a desbobinar:
_ Ah meu rapaz, não me vão afectar essas tuas... como é que digo isto... observações?
_ Não, estou mesmo a gozar.
_ Pois, bem, seja como for. Tenho aqui a tua ficha de cadastro que li com muita atenção e...
_ Com muita atenção? Começou em que ano?
_ Rapazinho, chega de piadas que isto é muito sério. Realmente a lista de delitos é muito longa, mas o assunto que me trás aqui é referente á parte psicológica dos testes que lhe fizeram no centro de prevenção há cerca de um ano, e o seu nível de relação com a juventude delituosa, ou não, da zona de Sintra e áreas circundantes. Assim, depois de consultar os meus conselheiros, chegamos à infeliz conclusão de que talvez fosses a nossa única saída. RAPAZ, o teu país precisa de ti.
Diga-se que se não fossem as dores no corpo ia começar a procurar as câmaras dos Apanhados, mas o caso para o meu lado era sério, visto ser eu que estava do lado de dentro das grades. Então decidi deixar que este maluco acreditasse que eu ia na conversa e respondi:
_ Chefinho, posso chamar-lhe assim? Bom, dá-se o caso que caso eu aceite esta missão o meu cadastro vá ficar limpo ? (tinha ouvido isto num filme e achei que era uma boa oportunidade para por em prática as coisas fúteis que nos enchem a cabeça).
_ Se essa for a sua contrapartida, creio que se pode arranjar.
_ Mesmo a cena das fotos com a mulher do padeiro?
O cabide saiu por um minuto e quando voltou respondeu :
_ Vais ter de pedir desculpas pessoalmente ao Sr. Padeiro.
Mesmo achando que quem deveria pedir desculpas era ele, por não me ter avisado que a mulher era um homem e assim evitava que eu o tivesse corrido à pedrada do meu atelier depois dele, ou dela, ou lá o que era, se ter despido e pedir

para pousar para mim. Assenti, para despachar aquela palhaçada e ver se me ia embora e ver onde é que andava o meu pessoal.
_ GOMES, - gritou o Chefe cabide- leve este senhor ao gabinete e dê-lhe as coisas que lhe pertencem.
O azulinho com cara de porta abriu-me a cela e levava-me por um braço para fora dali, quando eu lhe disse:
_ Então colega, pode me largar o braço que eu não vou fugir, olha que o teu amigo de ontem vai ficar ciumento.
Será escusado dizer que ele ia começar com a festa da noite anterior quando o cabide salvador interpôs:
_Então rapazes, dêem-se bem que vão se encontrar muito nos próximos dias.
_ COMO??
_##??#**»«»COMO??
_ Calma, calma. Eu explico. - Falou o cabide com olhos- O senhor guarda Gomes vai andar de olho em ti durante a tua missão, claro que á paisana e completamente despercebido. Para te providenciar tudo o que for necessário e evitar que tu te metas em mais trapalhadas. Serás, nos próximos dias, posto ao corrente de todos os detalhes, mas por agora faz a tua vida normal. Em breve serás contactado.
E saiu da sala com o aspecto de alguém que se lhe tenha enfiado uma vassoura no cu.
Saí para a rua de um modo pouco usual mesmo para a pouca inteligência que predominava naquela esquadra. Ofereceram-se para me levar a casa na ramona, que é aquela carrinha que parece um frigorifico onde não se vê peva. Mesmo agradecendo a atenção, eles, atenciosos, enfiaram-me na maldita e largaram-me numa rua que não era a minha.
Com a sensação de ter sido enganado, pus-me a caminho, e sem qualquer notícia do paradeiro dos meus amigos pois o nariz de maçaneta negou-se a dar-me qualquer informação. Creio que era por estar demasiado ocupado a pensar qual o melhor sítio para me dar um tiro. Muito violentos estes azuis.
A noite chegou comigo já a dar em doido por não saber do pessoal. Tinha passado a tarde a procurar mas cheguei à conclusão que tinha de esperar pela noite para saber notícias deles.
A chegada da noite em Sintra é razão de inspiração de muitos escritores e poetas, e vivendo-a, tornasse muito fácil saber porquê. Vivo aqui há dezassete anos e não consigo cansar-me. A Serra é pura magia ao cair da noite. Os verdes coloram-se de vermelho bem no cimo das copas das árvores tomando-as de luz, e o contorno dos montes fazem adivinhar recantos escondidos onde moram os sonhos...
_ Meu, consegues descer à terra e responder onde é que andas-te ontem toda a noite?
Era o Fil, com uma cara de santo que quase me deu vontade de lhe arrancar a aureola à chapada.
_Meu granda palhaço, os azuis devem andar como loucos à tua procura. Fazes ideia da merda que fizes-te?
Estava pronto para lhe começar a vestir a cara em tons de outono quando ele começou a contar a historia mais disparatada desde o dia que a igreja católica nasceu.
_ Ouve Índio, aquela cena de ontem não foi exactamente aquilo que parecia. Parece que os azuis já andavam em cima da gente há dias e só estavam á espera que um de nós fizesse merda, que por mero acaso fui eu...
_Sim, PURA COINCIDÊNCIA.
_ Espera Índio, ouve. Quando aquilo se deu, estava eu na minha fuga sempre eficaz, como tu sabes, e vou no meu voo por cima do muro do parque quando qual não é o meu espanto, estavam dois paisanas bem por baixo a amparar-me a queda. Claro que me preparei para o pior, mas não é que os gajos me mandaram começar a correr? Claro que me assustei e deixei cair a câmara. E claro que comecei a correr como um doido, mas não é que o raio do azul começou a correr atras de mim.- Toma a câmara, toma a câmara- gritava ele. Bom, como tu sabes ontem não estava na minha melhor forma e não demorou muito até que ele me alcançou e me estendeu a câmara. Sem compreender patavina aceitei a oferta, sabes bem que não sou de me negar a ofertas, e recomecei a correr. Aquilo ficou assim até hoje de manhã quando cheguei ao teu Atelier e me deparei com o Pedro a dormir. Acordei-o para saber o que se tinha passado e ele contou-me a cena da esquadra e que tu te tinhas lá ficado na cavaqueira com os azuis, enquanto eles tinham sido mandados embora depois de terem telefonado aos pais e tal e coisa...
Enquanto ele falava comecei a ficar realmente preocupado. A história que ouvia era tudo menos engraçada e aquela cena de 007 na esquadra começou a fazer um assustador sentido. Tinha sido uma cena montada para me apanhar numa situação no mínimo bizarra.
Só me saem é duques, merda.


FIM DA 1º PARTE

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2ª parte
PAZ APARENTE


Tinha esclarecido parte da história com o pessoal, mas mesmo assim havia demasiadas pontas soltas. Porque raio tinham os azuis escolhido a minha pessoa para aquela treta toda? E porque não me pedir directamente, sem recorrer a tangas e malabarismos? O sentido das coisas e as coisas sem sentido começavam a ser uma e a mesma coisa.
Os dias foram passando sem trazer nada de novo, e cheguei à conclusão que realmente tudo não tinha passado de uma alucinação colectiva, e decidi continuar com a minha vida de pintor e parvo nas horas vagas. Insignificante portanto.
Chovia, e um denso nevoeiro elevava-se do chão como se mesmo abaixo da superfície o Diabo estivesse a derreter o gelo. Estava a acabar uma tela que me tinham encomendado de uma paisagem da zona da Cruz Alta, bem perto de São Pedro de Sintra, a uns sete quilómetros do meu atelier. Tinha como foco dominante a própria cruz, pois o resto era puro mato votado ao abandono. Os patronos e presidentes de Sintra de antes, de agora, e os que se seguiram à data do retrato tinham privilegiado o que se via de um ponto de vista de quem chegava, para inglês ver portanto. Como arrumar a casa pondo o lixo por baixo dos tapetes. Só que em Sintra os “ tapetes “ são onde mora toda a história. Mas isso são favas que com o tempo hei-de por noutro bolo-rei.
_ Então Índio, deixas-te os nus para pintares paisagens e cruzes?- perguntou um Pedro com a cara borrada de tinta.
_ É meu caro amigo, enquanto a tua irmã não se despir para mim.
_Porra, palhaço de merda, sabes bem que a minha irmã só tem dezassete anos.
_ Mais precisamente dezassete e onze meses.
_ Vai te lixar meu grande filho da p...
_ Então meninos, vá lá, dêem um beijinho e façam as pazes.
A Ana tem esta veia reconciliadora que lhe fica muito bem, mas como a minha veia é mais para o lado da guelra, falei :
_Só se a senhora doutora pousar para mim.
_ Vai ta lixar meu grande filho da p...
_Esta gente não percebe o meu profissionalismo na pintura. Jamais pensei em sexo diante de um modelo... bom, porra, um gajo não é de ferro mas um profissional é um profissional e se a modelo não se pronunciar, eu também não digo peva.
_ então Índio, deste agora para mentir aos amigos?
O Pedro tinha assim esta maneira suave de por as coisas, mas a verdade é que eu me esforçava assim a modos que para manter as aparências de um verdadeiro profissional. Não tinha era culpa que as minhas hormonas começassem a registar nove ponto cinco na escala de Richter assim que um corpo com muitas curvas me toldasse a visão.
_Então pessoal, já o meu avô dizia que uma estrada em linha recta e uma mulher sem curvas, dá sono. E sabem que desenhar a dormir não é possível.
_ Mas tu nem conheceste o teu avô.
_ Á Eduardo, meu bom e velho amigo, tens esse instinto glorioso de abrires a matraca na exacta ocasião em que a deves manter fechada. Mas do que se trata aqui é do conteúdo da mensagem.
_ AAAAH!!!.
Queria acabar de pintar aquilo antes do fim do milénio, então limitei-me a estender uma caneta ao Pedro, piscar o olho à Ana, e esticar um dedo ao Eduardo. Esperava sair para a noite com a consciência de dever cumprido perante a minha condição de pintor, mas poucos tempo depois de ter recomeçado a pintar, as opiniões de onde deveríamos ir começaram a surgir à razão de dez por minuto, até a ideia do século surgiu da boca do autor, o Eduardo. Poisei o pincel no godé e reparei que não tinha tinta, mas isso não era o pior. O pior foi que a ideia do Eduardo me trouxe à mente aquela noite parva.
_ E o portador do neurónio singular poderia de uma vez por todas dizer que raio de ideia é essa?
O Eduardo sabia que era com ele que eu falava, porque sempre o tratei assim carinhosamente. Pois só com raiva ele ficava com a memória activa. Para terem uma ideia, certa vez, andavam os pais dele há semanas a ensiná-lo a andar de bicicleta, sem sucesso, quando eu, vindo a correr por detrás, lhe disse ao ouvido que a mãe andava com o homem do talho, e nem o facto do pai ser o talhante o impediu de me perseguir de bicicleta até me apanhar. Foi mais a maneira como eu o disse do que propriamente o conteúdo.
_ Bom pessoal, é assim. Ouvi falar que uma Quinta que não está habitada, ali na vila, na estrada que vai dar ao Palácio dos Seteais, . Achei que podíamos fazer uma daquelas nossas partidas á descoberta......... Quéquacham?
Ficámos todos a olhar uns para os outros. Costumávamos fazer expedições quando éramos mais novos, mas já ninguém se lembrava de voltar a falar disso há mais de cinco anos, desde que tivemos de nos separar numa fuga pela serra a baixo, a fugir de uma seita de satânicos, que o vosso humilde narrador se lembrou de lhes prestar uma visita para a seita ficar a conhecer o cornudo pessoalmente. Não deu assim muito resultado porque quando comecei a falar pelo megafone que a Ana tinha adaptado perfeitamente para soar, no mínimo, assustadora .Os supostos aduladores ficaram tão assustados que começaram a correr em todas as direcções, incluído na nossa.
Mas a verdade é que depois de estes anos todos a ideia de partir de novo à aventura me pareceu interessante. E todos pareciam de acordo.
_ E que Quinta é essa? – Perguntei.
_ É a Quinta dos Milhares.
Vi logo que o Eduardo estava a falar da Quinta da Regaleira, que engloba o Palácio dos Milhões. Um Palácio com um estilo mítico, da época romântica, cheio de estátuas de animais mitológicos nas paredes e no cimo das torres. Além do facto da Quinta ser privada, que a Ana na sua condição de estudante de Advocacia se lembrou de mencionar, a ideia pareceu-nos excelente.
A Quinta tinha sido vendida sucessivamente a várias pessoas ao longo dos anos, e ultimamente os proprietários eram uns nipónicos que andavam a comprar tudo o que fosse vendável. O palácio era desabitado pois nunca tinha visto qualquer luz no seu interior de todas as vezes que lá tinha passado, e diga-se que não foram poucas, porque da estrada dava perfeitamente para procurar sinais de vida e era passagem obrigatória das minhas eternas viagens ás entranhas da serra para registar, na tela, as molduras vivas da natureza.
Mas mesmo com estas minhas certezas, achamos por bem fazer esta viagem somente no dia seguinte, não fossem as minhas certezas motivo de mais uma fuga desenfreada. E desta vez à frente de um molho de suchi com pernas.
Decidimos por isso ficarmos por ali para combinarmos devidamente e com todos os ínfimos detalhes todos os pormenores da expedição:
_Então... vamos amanhã não é?
_É.
_É.
_É.
_Está combinado.
Acabei então a tela com o tempo disponível pelo pensamento de uma aventura que a todos tomou. A Ana desafiava o Pedro numa tempestade cerebral acerca da Quinta e dos seus segredos. Era algo que os dois faziam á muito tempo. Escolhiam um tema e debatiam-no até á exaustão. Mas o facto é que pouco sabiam acerca desta Quinta. A mesma sempre estivera fechada ao público, e por essa razão pouca informação havia nos guias turísticos.
E enquanto os dois discutiam o quase nada que sabiam, o Eduardo deambulava pelo atelier com um olhar ausente, quase como se estivesse a pensar. Depois do que me pareceu hesitação, ele baixou-se e pegou num papel que se encontrava perto da porta, no chão. Era provavelmente publicidade. O meu atelier era antigamente uma arrecadação, e, sendo um anexo da casa, não tinha caixa de correio. Logo á saída ficavam as caixas do prédio, mas os distribuidores tinham a compreensível mania de despejar os prospectos por baixo da porta. Depois de ele ler durante uma eternidade, o que nele era normal, arrumou-o no bolso, e depois, sem qualquer bandeira, olhou para nós no exacto momento em todos olhava-mos para ele.
_ Então- disse a Ana- é mais um pedido de pagamento da assinatura da Playboy? Então Sr. Henrique, não anda a pagar as mensalidades?
_ Se for, é puramente profissional. – respondi eu orgulhoso-
Perante o embaraço do Eduardo estiquei a mão a pedi-lhe o papel. Ele fez um longo silêncio e desdentou:
_ É pessoal, uma carta para mim.
_ Ó energúmeno, quem mora aqui sou eu, dá cá essa merda.
Olhou-me com a cara de peixe de aquário que eu tão bem conhecia e entregou-me a dita. Era um envelope negro com um desenho muito estranho na frente, como as ameias de um castelo, encimadas por o que parecia ondas entrelaçadas por traços em linha recta......_EDUARDO, pisas-te esta porcaria porra.
Era um envelope completamente negro.

Fim da 2ª parte____________________


3ªparte

_____________Diário 10 de Janeiro de 1995
É agora, com vinte e um anos, que me vejo na necessidade de começar a escrever um diário. Mas os acontecimentos dos últimos dias não me dão outra escolha senão registar no papel tudo o que se está a passar.
Estou a tirar o curso de advocacia, e comecei á pouco a estagiar, com cunha directa de minha mãe, numa empresa de seguros especializada na obtenção de produtos segurados que tenham sido ilicitamente subtraídos.
Era realmente uma simples estagiária, até ao terceiro dia de trabalho que se revelou o primeiro dia da última coisa que julguei acontecer-me.
Estava eu na única tarefa que supostamente deveria fazer nos próximos três anos, arrumar ficheiros, quando inadvertidamente ouvi uma estranha conversa.
_...então porque raio roubar aquilo com tantas coisas muito mais valiosas ali à mão de semear?
Não faço ideia senhor. O relatório afirma que o mais provável como sendo um trabalho encomendado, mas mesmo assim um trabalho de um amador, tendo em conta o modus operandi. Parece que o nosso meliante o fez por puro descuido, como se estivesse ali por acaso e facto de ter dado aquele uso a algo com tanto valor fosse completamente inconsciente.
_ Ter dado uso, como assim?
_ Bom, senhor, parece que ele usou o Cálice como copo descartável e aparentemente deitou-o para o lixo.
_ COMO??? E VOCÊS ACREDITARAM? – Um silêncio de uns segundos e perguntou algo que despelou todos os acontecimentos seguintes:
_ E como é que se chama?
_ Henrique Rossi, senhor, Henrique Rossi. Artista Plástico.
_ Merda – Disse eu com os olhos postos no sócio Mor da empresa e para o advogado que estava com ele -_ Disse, Henrique Rossi, Artista Plástico?
_ Mas quem é a menina? E o que faz a ouvir a conversa alheia?
E olharam-me como se me fossem comer à sobremesa, o que me fez responder prontamente quem era e porque tinha aberto a boca. Bom, na realidade tinha primeiramente pensado em inventar uma desculpa qualquer, mas estou farta de ver o Ìndio a levar aquela vida que ele considera tão secreta, mas que todos nós sabemos.
Não sei porquê, mas ele parece entediar-se com a pintura e de vez em quando passasse, e agarra num amigo, normalmente o Filipe, que é tão doido como ele, e partem numa aventura maluca para roubarem ou desviarem qualquer coisa. Como se fosse uma brincadeira, os parvos. A verdade é que uma das razões para ter escolhido advocacia foi exactamente para os ajudar, no caso de terem problemas. Mas foi a pedido do Fil, nunca do Ìndio. Aquele estúpido é demasiado orgulhoso para admitir que se mete em merdas. _ querida Ana, é exactamente por essa razão que nunca me apontaram nada. Admitir seja o que for é que devia ser crime.- disse-me certa vez. Idiota, energúmeno.
_ Então a menina diz que conhece este Henrique. Não sei se devia despedi-la já, ou ouvi-la.
Depois alguma hesitação decidi que talvez esta fosse a minha chance de ajudar aqueles dois, sim, porque se lá estava o Ìndio, o Fil não devia estar longe. Achei que um susto iria resolver a questão.
_ Sim senhor, conheço, e creio que posso ajudar a resolver este caso.
Eles entreolharam-se, e limitaram-se a fazer um trageito com a cabeça como quem diz que eram todos ouvidos.
_ Bom- argumentei eu- creio que arrancar algo dele pelos parâmetros normais nunca daria resultado. Diga-mos que o Mundo em que ele habita não é nem um pouco parecido com o nosso. Ele é daqueles que considera que um dia normal é quando acorda com a sensação de que é uma bola de Berlim e o kremlin o chama ao serviço, como ele costuma dizer. Louco portanto. Mas não no sentido que lhe costumamos dar. É mais uma excentricidade que ele se acha no direito de ter. E isso é apenas uma maneira de abreviar as coisas. Bom, resumindo, o único modo de encontrar o que desapareceu é fazer com que ele fale. E fazer com que ele fale é faze-lo de um modo que ele se sinta em casa, ou seja, no planeta dele. Tem que ser feita uma loucura com lógica, é o único modo, garanto.
Digo-te, diário, não foi fácil entrar em acordo. Até eu duvidava que desse certo, mas era realmente a única saída.



Ana C.


_______________COINCIDÊNCIAS ____________



Abri aquele envelope com um olho posto no Eduardo, que olhava como se o dito me fosse explodir na cara. Espanto inicial, desta vez a cara de peixe de aquário era minha. Um convite para uma festa... que coincidência... na Quinta da Regaleira.
_ Eduardo, meu caro amigo, então querias ir á Quinta sozinho, né?
O meu olhou-me com um sopro de alguém que se lhe tenha tirado uma mobília de sala das costas e esganiçou alvoraçado:
_ É isso mesmo Índio, é isso mesmo. Deve ser uma ganda festa, e o convite não fala de mais ninguém alem do convidado... e eu queria tanto ir.
E olhou para mim com a cara de um puto que quer que os pais acreditem que não atirou a pedra de propósito.
Digo-vos que aquela coincidência do convite no mesmo dia da ideia do século foi a primeira coisa que me passou pela cabeça, mas a historia estava realmente a ficar engraçada. O convite dizia que a festa era dali a dois dias, então não havia razão para adiarmos a ida nocturna á Quinta, ainda que agora houvesse a alta probabilidade de ser habitada. Pessoalmente era agora um típico trabalho de reconhecimento, ossos do sacrifício portanto.
Deixei então as coisas tomarem o rumo menos provável e disse ao pessoal:
_ Então e irmos todos à festa?
_ Mas no convite não falam em mais ninguém!! – disse a cara duvidosa do Pedro.
_ Exactamente. Não diz nem só nem acompanhado, capiche?
Liguei o leitor de C.D. e pus o som contagiante do meu amigo Wolfgang na ópera d’O Rapto De Serralho, que costumo ouvir de cada vez que quero tomar uma decisão.
_ Desliga lá essa porcaria. A última coisa que eu quero ouvir são gritos.- disse uma Ana assustada com as mãos nos ouvidos.
_ Não tens aí batida, o pacóvio?- um também discordante Eduardo-
_ A única batida que tenho está em forma de taco de beisebol, queres ?
_ E quanto á senhora doutora, já devia saber que isto é tudo menos gritos. Creio ser o único estilo de música que se pode ouvir sem estar com a sensação de ter o cérebro em obras. Mas pela vossa cara agonizante e boa educação baixarei um pouco o som, está bem meninos?
Só pela cara de alívio dos meus convivas, quase que aumentei o volume só para depois voltar a baixa-lo, pois creio que o melhor de uma zanga, é sem dúvida a reconciliação. Mas a minha máquina cerebral já estava a fazer pipocas com ideias que todos julgariam infelizes. Todos menos eu, claro.

A manhã chegou a anunciar um dia que se afigurava glorioso. Olhei em volta para me assegurar que não ia tropeçar em ninguém que se julgasse parte da mobília. Estava só. Provavelmente tinham saído depois de eu ter adormecido, mas mesmo assim confirmei debaixo dos lençóis por um sinal da Ana. _ continua a sonhar palhaço.- quase que a ouvi dizer depois de ver que tinha adormecido agarrado a uma escultura representando Morfeu, Deus do sono ou do sonho. Não sei nem quero saber, ainda para mais agora, que me sinto devassado por esta criatura. Córror.
Tomei um banho e saí para o Sol da manhã, que devia estar de folga pois chovia a cântaros, e entrei no café mais próximo que encontrei para recuperar forças e ler as notícias do dia anterior, que a vida está cara e isto de comprar jornal é para ricos, e a única coisa que eu tenho de rico é quando me dizem – rica merda que fizeste, ó artista. Bom, continuendos portanto.
Depois de ler as páginas da bolsa, que são muito interessantes do ponto de vista de quem não entende peva, como eu, passei para as páginas centrais para confirmar se não vinha a minha gloriosa foto que me iria granjear fama e umas férias, providenciadas pelo estado num daqueles hotéis cheios de muros e luz aos quadrados.
Nada, nem fotos nem letras, nada. A porcaria da página estava em branco..., excepto... bem no fundo da folha havia uma frase « Vire na primeira rua á sua direita Sr. Henrique, agora. ». Porra, pensei, sou assim tão previsível ? E cometi o erro de amassar o jornal no preciso momento em que o dono da tasca olhava para mim. _ Vossemeçê vai pagar isso, não é ? É a Segunda vez hoje que me estragam o jornal.
_ Bom, lá se foi a minha intenção de não pagar jornal, não é chefe ?
Ainda que a estranheza evidente no tocante a quem teria posto aquilo no jornal, e que a subtileza tinha sido tal que o dono da taberna reparou.
Saí pois, daquele antro de mau caminho, que é a obrigação de comprar o jornal, e pus-me a caminho dessa primeira rua à direita.
A estrada estava estranhamente vazia, e aquela banana de óculos escuros estava um pouco fora do contexto, nem havia sol nem nada, para quê os óculos?
De qualquer das formas continuei a minha caminhada até ao fundo da rua, naturalmente em direcção à banana, que no momento tirava os óculos e estendia-mos a medo.
_ Então meu, isso é para quê?
_ Meu o catano, gaiato morcão dum raio, põe a merda dos óculos. Binde aqui morcão.
_ O meu amigo maçaneta, então seu Gomes, por aqui?
_ Á fodeibos, catano... não bês que eu estou disfarçado, cum raio...põe a porcaria dos óculos antes que te enfie duas chumbadas nos cornos catano.
Argumento sagaz que me fez por os óculos.
Não acontecia nada, e perante isto olhei para o azul que agora estava amarelado pela banana. O palhaço segurava um papel nas mãos á altura dos olhos com as letras voltadas para mim:
_ Lê catano, já não havia óculos com visor electrónico e á que manter as aparências.
Achei que não deveria nada á estupidez se lesse e agarrei no papel. « A sua missão, caso decida aceita-la( mesmo não tendo saída) , será descobrir quem é o cabecilha da rede de tráfico de antiguidades que actua na zona. Recebeu ontem um convite que lhe dará acesso à casa onde supomos que se encontra o principal suspeito. ATENÇÃO, o nosso seguro não cobre nada que se refira a si. Esta carta será destruída em 10 segundos.»
Olhei para a banana ambulante que me esticava um isqueiro aceso em direcção á missiva, pegando-lhe fogo :
_ É o orçamento catano... á que poupar carago!! E desatou a correr rua abaixo naquela figura que se pode imaginar. Não todos os dias que se vê uma banana a correr, comigo só acontece à média de uma vez por semana, mas mesmo assim não me contive a vê-lo desaparecer na esquina como se ele fosse a única pessoa no mundo e as pessoas não reparassem na fruta de óculos compressa de chegar ao resto da salada.
Ora bem, pensei, o que é que temos aqui. Um convite, uma história estúpida, uma festa para amanhã, uma aventura para hoje, uma história estúpida, um ladrão de antiguidades, um cabide ambulante, uma porta malcriada que se veste de banana, uma história estúpida...bom, todos os ingredientes para alguma coisa intragável. Mas à falta de algo melhor, como jogar ao berlinde com os putos da minha rua, decidi ir até ao fim (se houvesse fim!!)
desta... desta...bom, disto.
Continuei com a caminhada gloriosa de agente quase mais ou menos secreto, ao ponto de nem eu saber, e esperei que a noite chegasse para proceder a um melhor ângulo da dita ( e não estou a falar da Ana!). A ida à Quinta tinha de ser proveitosa porque..... faltavam cartas neste baralho.

Fim da 3ª parte

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4ªparte



- ONDE É QUE JÁ VI ISTO? –



Os ponteiros do relógio apontavam para perto da meia-noite quando todos nos encontrávamos bem perto da entrada da Quinta. Tínhamos acordado entrar pela lateral de uma pequena queda de água que ficava mesmo ao lado do alto muro do Palácio.
Era realmente a única entrada viável para quem não era convidado. Então, um a um subimos a queda de água até onde o chão começava a nivelar, o que me pareceu uma eternidade, ( se bem que o ponto em que tive de ajudar a Ana a subir empurrando-a pelo traseiro me fizesse desejar estar a subir o Evereste ), chegamos por isso, ao fim da dita.
O riacho, pouco antes de se precipitar na queda vertiginosa de três metros, tinha uma pequena ponte com um formata semicircular, completamente rodeado de plantas trepadeiras que lhe dava um aspecto realmente interessante. Enquanto a ultrapassávamos, estava eu a dizer aos meus botões que só a visão daquela ponte já tinha valido a viagem quando se nos começa a deparar um cenário que apenas nos filmes julguei possível.
Uma espécie de torre invertida afundava-se no chão como um poço numa escada em espiral, com arcadas trabalhadas a marcar o limite da escadaria. E descemos até a luz de noite quase não iluminar os nossos passos, culminando no fundo no que parecia uma rosa-dos-ventos em mármore encrostada no chão nu.
Aparentemente não tínhamos saída a não ser voltarmos pelo mesmo sítio, a não ser pela antiga existência de uma porta que havia sido tapada por uma enorme pedra rectangular:
- Provavelmente foi tapada para impedir a fuga de alguém, ou para impedir a entrada...
O Pedro deambulava pela probabilidades do fecho daquela porta quando o Eduardo desapareceu através dela, aparentemente por magia, pois não tinha reparado em qualquer abertura, quando ouvimos ao longe um assustador grito:
- PORRA, BUÉ DA LOUCO!!!
Olhamos em volta e ficámos à escuta de proveniência do grito, que continuou num tom abafado até aparecer uma sombra no lugar onde deveria estar a porta:
- Bué da louco pessoal, uma porta giratória...
Claro que era o Eduardo, que parecia estar fascinado pela descoberta, ao ponto de se ter esquecido que a Quinta era agora habitada e o grito ter chegado pelo menos a Cascais.
- Meu idiota disse a Ana adiantando-se a mim -agora é que lixaste tudo. Temos que sair daqui, rápido.
- Calma pessoal -alvitrou um sempre apaziguador Pedro – ninguém sabe da proveniência do grito, mesmo que o tenham ouvido. O melhor é ficarmos em silêncio por um bocado, pode ser que tenhamos sorte.
A razão fez com que o silêncio tomasse conta de todos, o que me deu tempo para reparar no que estava para lá da porta de pedra.
Aos poucos começamos todos a sair do poço, não para a rua, mas para o que parecia uma gruta construída de uma maneira irreal. Serpenteava talvez por uns cinquenta metros, iluminada por gigantescas velas de parafina num sinuoso caminho de pedra escura.
No preciso momento em que entravamos na gruta, o palhaço do Fil começou a esconder uma das velas no casaco.
- Então idiota, estas a ficar estúpido ou que. Para que é que queres a merda da vela?
- Então Índio, não é todos os dias que se vê uma coisa destas, e ninguém vai notar.
- Pois não, se tu te vestires de vermelho e disseres que és um marco de correio, - disse, para meu espanto, um sorridente Eduardo.
Agora também eu me tinha esquecido da questão do barulho. E foi o suficiente para começarmos a ouvir algo atrás de nós.
- Corram pessoal, vem aí alguém.
E assim que começamos a corrida, um de nós estatelou-se com estrondo no chão. O Fil.
- Corram, salvem-se vocês, acho que parti qualquer coisa.
- Levanta-te estúpido, o que se partiu foi a vela. Disse a Ana enquanto chutava o coto partido e corria para a saída.
Depois de uma corrida desenfreada pela gruta, paramos abruptamente pois deparamo-nos com mais um cenário fantástico.
- O que é isto? – perguntei eu depois de um silêncio providencial que confirmou que não vinha ninguém.
Um lago, talvez artificial, mesmo na saída da gruta, onde não se via o fundo, mesmo com a luz da Lua espelhada. Com uma única passagem através dela, por um carreiro de pedras arredondadas, de topo liso, a uns três centímetros da tona da água.
Seguimos pelo carreiro até uma escadaria que subia rente á parede, no máximo silêncio possível, até ao jardim frontal do Palácio, onde estatuas adornavam o caminho, como que apontando para três estatuas centrais que pareciam aguardar por nós. Provavelmente porque estavam mesmo, pois as duas, mais pequenas começaram a correr na nossa direcção:
- Corram porra, - gritou o Fil – CÃES!!!
O meu primeiro pensamento foi atirar o Fil aos cães, mas como estava uma das estátuas mesmo ao lado, bem mais perto que o Fil, subi. E enquanto via o pessoal a safar-se como podia, tive uma visão.
A estátua que ainda á pouco se encontrava ao lado dos animais começou a caminhar calmamente na minha direcção. Até que atingiu um ponto onde a Lua incidia com mais força, e eu pude ver uma chinezinha, qual geisha, de quimono escuro, que lhe escorria pelo corpo como se uma água negra a cobrisse, com uma trança muito comprida que acabava no que parecia três lâminas curvas do tamanho de um dedo. E falou:
- Confúcio diz que pala domal a besta, á que olhá-la nos olhos, nunca fugil dela.
- Pois, mas o meu avô dizia que se não tiveres uma pedra á mão, sobe a uma árvore.
Bom, foi uma saída um bocado disparatada, mas os cães pareciam não querer saber do que eu achava dos olhos deles, porque pareciam mais preocupados com o sabor do meu pêlo.
- Chama lá os teus monstros, ó boneca, garanto-te que somos intragáveis.
E ao dizer isto tirei o convite das calças e estendi-lho.
-A festa é só amanhã.
- Detalhes. Não gostamos de chegar atrasados... vá lá, não fazemos mal a ninguém.
Para minha surpresa não foi preciso argumentar mais, pois ela, com um grito estridente, dizendo talvez CÃES, em chinês claro, chamou os monstrozinhos e prendeu a coleira ao primeiro que apareceu. O outro só apareceu um minuto depois, com o Fil a agarrá-lo literalmente com unhas e dentes.
- Merda, o animal está vacinado?
- Clalo que sim, que pelgunta!!
- Estava a falar do Fil boneca. É melhor levares o cachorro ao veterinário.
A geisha olhou-me horrorizada, mas perante o meu sorriso de estimação, o tal indecifrável, tipo Mona Lisa, baixou o olhar e começou a caminhar em direcção ao palácio:
- Confúcio diz que o conhecimento está semple um passo á nossa flente, como o fim do alço ilis... sigam-me até ao palácio pol favol.
- Já o meu avô dizia que se tiveres o conhecimento ao alcance da mão, vê onde pões os pés.
- Ena pá, Índio, o teu avô também conhecia o Confuso? Disse um demasiado feliz Eduardo.
- É Confúcio, energúmeno. Cortou a Ana.
- Aaahh, então é dai que vem esse nome, Confúcio Energúmeno.
Bom, securas à parte, seguimos até á parte mais iluminada, mesmo rente ao palácio, a uma frondosa entrada, iluminada por archotes em forma de garra, que fazia a luz parecer tremula e dava a tudo uma aura fantasmagórica, onde dois palhaços vestidos de amarelo (ou amalelo? ), guardavam a entrada. E digo palhaços as pinturas pareciam saídas de uma ópera chinesa.
A Ana e o Pedro pareciam fascinados com tudo isto, mesmo mostrando indiferença, eles não paravam de olhar para mim á espera que eu dissesse algo.
- Então Índio, não dizes nada? Olha só para isto, irreal meu, não achas?
- Já viste?
- Já reparas-te?
- Olha aquilo.
Queriam mesmo que eu falasse, mas ninguém parecia reparar no que estava ali completamente fora do contexto.
- Pessoal, eu sei que isto é assim a modos que fora do normal para vocês, mas será que ninguém vê o que realmente está aqui FORA DO NORMAL?
E apontei para as estatuas que adornavam as paredes do palácio e o topo das torres.
- Estão vivas!!!
- Não estúpidos, parecem reais, mas não estão. É aquela estátua que não tem nada a ver com as outras...
- HAAA. Disseram todos em uníssono mostrando completa indiferença perante o facto de no meio de tantas estátuas de animais e bichos mitológicos estar a estátua de um carteiro.
Pois, quando julgava que a história não podia ficar mais idiota, ela alarga á estupidez.
Entraram todos no palácio em fila indiana, sem ligarem aos meus protestos quanto ao carteiro mitológico, quando eu, que fiquei para último, me deparei com um envelope voador que aterrava, renitente, aos meus pés. Era para mim. Aquele carteiro, que agora me parecia estranhamente familiar, tinha-me atirado a carta e agora, na bruma da noite e no cimo da torre, fazia sinais com a mão a indicar que estava tudo bem. Estiquei-lhe também o dedo, embora eu o tenha feito com o do meio. E entrei também enquanto lia a missiva...
« Sr. Henrique, cremos firmemente no seu valor e informamos que o que desejamos se encontra algures nesse Palácio. Tratasse de um Cálice muito antigo, pertencente aos templários, ou, muito provavelmente anterior a eles. Pedimos apenas que confirme que esse Cálice se encontra no Palácio.»
«P.S. Já agora, não se importa de proceder á destruição da carta, é que o nosso comissário não consegue descer do telhado.»
Bom, de momento parecia que o meu trabalho para esta noite estava feito, pois cheguei à conclusão que numa coisa que se denomina Única, as probabilidades de haver outra são um pouco menos que nenhumas. É mais certo que sem dúvida.












- DESCULPE ...
... PODIA REPETIR? -







Demorei um bocado a habituar-me à luz difusa do interior do palácio, mas, à medida que avançava pelo corredor, os retratos nas paredes fixavam-me o olhar como se tivessem vida. Era como aquelas fotos em que se olha directamente para a objectiva, mas nesta luminosidade cheia de sombras... porra, onde anda o pessoal? Pensei antes de começar a cantar alto o Grândola Vila Morena, do meu amigo Zeca, de cada vez que era assaltado pelo fantasma do Salazar.
- Então Índio, com medo? Gritou a Ana do fundo do corredor. Esta gaja conhece-me bem demais. Conhecimento teórico, nada prático, infelizmente, pensei. Alarguei o passo até á porta onde ela estava e entrei. Entrei para logo depois dar um passo para trás para confirmar se não tinha passado para outra dimensão no preciso momento em que vi a sala.
Mas que porcaria de cena é esta, pensei. Quer dizer, um gajo vem por aí, entra dentro de um palácio com mais anos que a minha vizinha da frente, o que é extremamente difícil, a gaja já fez mais plásticas que uma fábrica de tupperwares, mas mesmo assim aparenta ser irmã do Egas Moniz, e depara-se assim a modos como uma tenda do Ali Bábá, mas sem os quarenta ladrões. Bom está ali o Fil, e ele vale por uns quatro ou cinco, em quantidade, mas em qualidade, mas isso são outras matemáticas.
Havia de tudo um pouco. Louças, bibelôs, bonecas, bonecos, fios de ouro, de prata, muito pechisbeque, anéis de ouro, de prata, mais pechisbeque, estátuas encrostadas de jóias, outras sem jóias, mais pratearia, muito Fil de órbitas loucas e a babar-se como um louco...
- Então Filantra, controla-te. Vi-me obrigado a dizer, mesmo que a vontade de o imitar fosse muito forte.
- Meus senholes e senholas...
Acordou-me a chinezinha do meu transe épico pelo conto das Mil e uma noites.
- Cleio que devo dizel o que realmente se passa. Mesmo que tenham vindo um dia mais cedo. Como Confúcio costumava dizel – A consciência do não sabel é maiol que o sabel da consciência, e a noção de conhecimento é o caminho mais culto-
Por esta altura, como é lógico, a confusão quanto ao que ela dizia era grande, mas como dizia o meu avô « é como dizes, e não o que dizes», e a voz desta chinezinha... bom, adiante.
- ... Acho que vocês devem sabel que esta Quinta foi complada pol um glupo japonês á algum tempo a esta palte. Nesta época de tlansição, achamos pol bem começalmos a adquilil plopliedades neste vosso país...
- Eh – cortou o Pedro – tu não és chinesa?
A chinezinha olhou o meu amigo algo espantada pela pergunta mas pareceu entender e respondeu afirmativamente com a cabeça, e que linda cabeça devo acrescentar.
E o Pedro continuou:
- Então e revolução cultural, e o livrinho vermelho, e o Mão, e a guerra com o Japão...
- Calma, calma – Atalhou por sou vez a chinezinha – pensei que para vocês nós fossemos todos « Amalelos » mas pelos vistos enganei-me. Meu amigo Pedlo, pala sua infolmação, faço palte de uma família de Chineses e Japoneses, onde a guela foi uma tliste consequência da inaptidão dos políticos. Essa é uma das razões polque aqui estamos. Agola, posso acabal de falal?
O Pedro não parecia muito convencido, mas engoliu em seco a assentiu com a cabeça em silêncio à espera que a gueishasinha acabasse.
- Então nós vimos que em Poltugal havia a folte plobabilidade de constluirmos uma sélie de lojas pala vende de ... bom, pala venda de tudo um pouco ...
Bom, a verdade é que a minha amiga do sol nascente contou uma história muito interessante, não tenho dúvidas, mas a minha atenção estava virada para outro lado.
O Cálice.
Por incrível que pareça, na sala, no meio daquelas traquitanas todas, estava um armário completamente escancarado. No seu interior, SURPRESA!!!. Não um, não dois, não três, mas dezenas, senão centenas de Cálices iguais ao tal que deveria ser único. Único porra.
Ninguém disse a estes palhaços que o único é Uno, só um. Ou eles discutem a paternidade dos filhos com o resto da rua onde moram? Só aí o tão proclamado Uno faria sentido. Merda, mas que merda é esta? Pensei, ou pensei que estava a pensar mas pela cara do pessoal...pensei alto:
- Então Índio? Agora deste para falar sozinho ou quê? – ouvi o Fil dizer no preciso momento em que olhava na mesma direcção que eu, e após um silêncio, os olhos começaram-lhe a inchar como se fossem sair das órbitas:
- Porra Índio, merda Índio, merda merda merda, estou quase a mijar-me nas calças, desde os meus dezassete anos que não mijo as calças Índio, diz-me que aquilo não é o que parece.
- Tem calma contigo minha besta. Tudo tem explicação... ou quase tudo, não podemos esquecer o cérebro do Eduardo.
Bem, a verdade é que no momento em que ia começar a dissecar a minha teoria da razão daquela palhaçada, olhei em volta.
Espanto inicial.
Estavam todos a olhar para mim, como se hoje fosse acabar uma telenovela e eu fosse o raio duma televisão.
Naquele minuto em que tudo pareceu suspenso, fez-se luz, uma via rápida de luzes, uma cidade de luzes, luz, muita luz, luz por todos os lados, luz, luz:
- ÉH, quem é que apagou a luz? Gritaram todos quando deixei cair, sem qualquer intenção claro, uma jarra cheia de água contra uns candeeiros, muito pirosos por sinal.
Ainda os ouvia bater contra os moveis como um bando de baratas enquanto passava a porta do Palácio onde estavam os dois palhaços da ópera. Como estavam a obstruir a passagem falei:
- Ó Gomes, ajuda ali o chefe cabide a descer do telhado que ele com pau que parece que tem no cu não consegue.
Enquanto os dois ficaram com caras de parvos, como se isso fosse possível debaixo daquelas pinturas ridículas, o que diga-se em abono da verdade e para meu espanto, até foi, eu simplesmente saí. Em direcção ao pôr do Sol, indiferente perante a Lua. Haiow Sílvia...
... desculpe, podia repetir?
Heiow, Silver?... pois.







P. S. Quanto à porcaria do Cálice, que era o original, caso interesse saber, e para que a história não fique a meio, fiquem vocês a sab...















quarta-feira, dezembro 05, 2007

No Segredo Dos Dias


(o nome não tem nada a ver com a história mas é bonito, não é?)


Louco, eu??? Loucos são estes espécimes que encontrei na alta segurança para pessoas (ou algo que se lhe pareça), aquando de minha estadia forçada para apurar quem sou (vá-se lá saber porquê).

Jorge passava a vida a implicar com todos os companheiros. Estava convicto que se lhe dessem um pontapé certeiro e com matemática força no cu, seria gloriosamente considerado o primeiro satélite Angolano em orbita terrestre.
Tenho a certeza que mais tarde ou mais cedo realizará o seu sonho.

O Nuno era perigoso. Olhava-se constantemente ao espelho a simular situações de ataque e a fazer cara de mau.
Estava convicto que com a devida força mental apontaria sem medos um dedo ao guarda e PUM!!!, fulminava-o com um tiro certeiro.
É perigoso, digo-vos eu que por várias vezes o vi apontar á lua e PUM!, fazia-lhe um buraco. Olhem para a lua se não acreditam.

Graça (Gemebundo Dinguinha, para os conhecidos) disputava a atenção do espelho com o Nuno com um ciúme negligente, não fosse o Nuno disparar o seu tiro fulminante.
Balouçava-se ao som de música do seu discomen com os seus fonomens, como ele próprio afirmava. Estava convicto que havia uma discoteca do outro lado do espelho... eu disse havia? Pois menti. Ainda existe a tal discoteca, mas nunca pude lá entrar. Diziam-me que só com companhia ou algo parecido.

A verdade é que invejava o Graça nas suas saídas musicais á tal discoteca. Com o seu balouçar de cabeça a olhar de um braço para o outro, como se neles se pendurassem duas morenaças descomunais a contar segredinhos que eu bem me esforçava para ouvir. E o Graça (que inveja!!!), do alto do seu metro e vinte, ria, ria e ria para as morenas descomunais como se entendesse a patavina que elas contavam.

Cezar provinha de um País tão pequeno que ele não conseguia evitar o embaraço quando mencionava que no País dele, ao tentarem construir um estádio de futebol, tiveram que o fazer a meias com o País vizinho. Estádio esse que teve que fechar após os primeiros jogos pois os jogadores acharam que era anti-jogo ter de mostrar o passaporte de cada vez que passavam o meio campo.
Mas Cezar era um nobre. Descendente directo dos guerreiros Zulu. Não tenho duvidas, acreditem. Creio mesmo que o seu mal dispor constante se devia ao facto do chefe lhe ter surripiado a coroa quando ele entrou altivamente neste estabelecimento. Dizia mesmo para quem quisesse ouvir que quando fosse proclamado Rei, destituiria o chefe do seu cargo e o punha a vender balões na feira popular. Infelizmente desconhecendo que esse era o sonho escondido do chefe.

Havia na realidade um que eu invejava verdadeiramente. O Artur. Era o único que tinha reais chances de sair daqui a qualquer momento. Era alto, esguio, e com umas orelhas descomunais.
Certa vez, no pátio, vi-o alvoroçar uma corrida desenfreada e de um salto, (juro-o) planou pelo menos dez metros. Mas infelizmente voltou em voo picado sem tampouco galgar a primeira rede.
Dizia entre dentes que só precisava de mais um pouco de treino – Só mais um pouco de treino.
Conto-vos agora em segredo que por várias vezes lhe pedi para me levar com ele, e sempre com uma negativa como resposta. E dizia-me com cara de gozo que faria um voo circular de despedida, e de seguida, qual concorde, acelerava o motor de um Walkman com uma ventoinha engenhosamente adaptada, sem duvida em direcção ás galinheiras.

E Tinoco, terror dos quatro cantos do mundo, não tenho duvida. Afirmava convicto que certo dia matara cinco de uma vez, cinco digo-vos eu, também convicto da verdade.
É claro que omitia que esses cinco eram mosquitos, mas que importa isso? Matou-os sem remorso e com uma cara de glorioso conquistador dizia:
- E da próxima torturo-os antes de os matar para descobrir um de óculos que escapara incumbe da batalha e ainda( que descaramento!) o zombou dizendo que voltaria com outra quadrilha.
Escusado será dizer que o Tinoco passava horas de plantão aguardando o contra ataque eminente. Cheguei orgulhosamente a montar guarda com ele e certo dia vi mesmo um espião inimigo rondar as nossas trincheiras e a tomar anotações, sem dúvida estratégicas. Desconfio mesmo que era o de óculos pela maneira que franzia os olhos de cada vez que tomava anotações. Tirara os óculos para passar despercebido, mas eu, que não sou parvo, sei que mais dia, menos dia eles irão atacar, qual kamikases, contra o glorioso gladiador Tinoco, que olha demoradamente a janela aguardando o esperado ataque com olhos de desafio.
Não tenho dúvidas que pedirá reforço aéreo ao Artur.

E havia o Cláudio. Esse se calhar mais perigoso ainda que o Tinoco ou mesmo o Nuno. Dizia mesmo que o seu recorde era de sete de uma vez. Embora nunca o tenha conseguido provar, eu acreditava piamente pois via bem como os guardas, de cada vez que se afastavam dele, olhavam de soslaio, não fosse ele sacar de uma 45.
Certa vez, ouvira ele numa acesa discussão com certo guarda. Verdade seja dita que não me atrevi a ir ver. Naquela altura apareceu o Cláudio com um saco bem cheio que supostamente trouxera da visita de um familiar. Quanto ao guarda, nunca mais o vi. Nem eu nem ninguém. Já por várias vezes reparei em vários guardas acercarem-se do Cláudio e perguntarem a medo( e digo-vos, mostravam um medo tremendo!):
-Ó senhor Cláudio, desculpe incomodar, mas onde é que enfiou o meu colega... é que, sabe, (diziam a custo) ele deve-me dinheiro.
-Agora é tarde (dizia ele) agora é tarde.
Quanto ao saco que ele trouxe naquele dia, ainda permanece intacto no armário, agora a deitar um estranho cheiro.

Mas ouve um dia importante... importante? Importantíssimo! Foi o dia que chegou o Ari. E será o Ari importante? Importantíssimo digo-vos eu.
Ele era, nem mais nem menos, que o sócio maioritário de um importante... importante? importantíssimo partido político, digo-vos eu. Era do P.S.D., sim, sim, do P.S.D., vinha com uma carta de recomendação e tudo, incrível. Incrível? Incrível e verdadeiro. Quase não resisti a fazer-lhe continência, tal era o meu espanto. Um vice-presidente ao pé de mim era quase tão importante como um comprimento ao Papa (ou talvez não).


E a conversa que ele teve com o meu amigo Jorge. Altamente intelectual. Nem me atrevo a descrever tal conversa, com o Jorge interessadíssimo com a chance( como lhe prometia convicto o sub-presidente) de concretizar o seu bendito sonho. E reparem que a dificuldade de fazer os preparos matemáticos para tal pontapé era digno de um génio.
- Creio, caro Jorge- dizia ele- que a ideia de tal satélite é prodigiosa. Quero apenas que me prometa que em troca de tal lançamento, apenas lhe peço que á passagem de outros satélites idênticos a si lhes entregue estes prospectos do meu P.S.D..
Sem dúvida um pedido importante... Importante? Importantíssimo.

E o dia a acabar e não é que entra alguém sem ser convidado ( mesmo que para entrar aqui não seja preciso convite). E não julguem que era alguém perigoso. Nem tão pouco um político, ( que era pior claro). Mas pior ainda era esta figura, baixa, cabeluda, e com uns olhos sem expressão que davam arrepios. Um louco, um maluco, nem mais. Estivera internado na psiquiatria, mas não era por se considerar a Padeira de Aljubarrota ou o Napoleão Bonaparte, não senhor. Esta triste figura de gente era nem menos nem mais que um habitante da Lua. Sim, ouviram bem, da Lua. Assim o comprovavam os atestados médicos dizendo que era verdade. Não que eu duvidasse não senhora, mas acreditei plenamente assim que entrou e disse:
-Quem é o nabo do terrestre que anda a dar tiros na minha casa? - olhando para o Nuno com olhos fulminantes
O Nuno, perigoso como é, tratou logo de preparar o dedo para o fatal disparo. Mas o Cláudio, o mais perigoso ainda, sacou da 45 e começou a disparar, fazendo o cabeça de Lua fugir como um rato. Como um rato? Não, mais como um ratinho pois se o Graça tinha um metro e vinte, este ratinho pouco mais tinha que meio metro.
O Jorge quis intervir mas tinha o traseiro dorido de tantas experiências desencadeadas pelo amigo sub-presidente nas suas tentativas de o colocar em orbita.
Quanto a mim, limitei-me a dar á cauda para me refugiar na gruta do meu aquário. Detesto violência.

domingo, dezembro 02, 2007

A REUNIÃO





Era urgente manter a reunião no seu estado normal. Estava tudo marcado com a devida antecedência. A mesa, redonda, albergava os futuros sócios da empreitada.
À minha frente a pulga Jacinta. Velha glória dos cinemas a preto e branco. Especializada em idosos e crianças. Os primeiros facultavam-lhe a sabedoria, os segundos, a sobremesa. Sangue apenas, costumava dizer, mas sangue com alma.
Ao meu lado direito, com olhar desconfiado de quem albergava uma nação inteira de familiares da Jacinta, o Picasso, cão de água. Único da sua espécie que não sabia nadar. Especializado em ralações públicas, a atestar pela autêntica enciclopédia que era o seu ficheiro no canil municipal. Vadio sim, mas vadio com pedigree. Um senhor, cão claro.
Do meu lado esquerdo...- Desculpem, mas acho que eu como membro mais importante e mais inteligente do grupo, devia me sentar numa das pontas da mesa. -Disse, na sua entrada sempre espalhafatosa a melga Margarida.
- Mas a mesa é redonda, senhora.- Bom... nesse caso acho justo que me sente a um canto.- Claro Einstein, escolhe um e senta-te. - responde a já impaciente Jacinta, que nunca se dera bem com a melga Margarida nas suas discussões sempre intermináveis de qual o melhor sangue vintage. A Margarida é uma melga importante, ou pelo menos ela crê fielmente na importância de ter Chupado o sangue a quatro presidentes da república e a um papa católico. Mas à parte um pequeno problema com álcool, que a faz entrar em delírio a cada dez minutos, era exactamente a sócia que precisávamos.
Bom, como dizia eu antes da entrada da Margarida, à minha esquerda estava o pneu Abreu, meu amigo à muitos anos. Um romântico incurável, casado nove vezes com uma recauchutagem contínua e mais uma vez à beira do divórcio. Amigo André, costumava dizer, as relações com a recauchutagem são desgastantes, somos muito unidos no decorrer da vida mas inevitavelmente acabam por acabar, entende?
Claro que entendia, assim como achava compreensível o amor eterno que sentia por uma câmara-de-ar nossa vizinha.
_ Meus senhores e minhas senhoras, chegou a hora de começarmos esta reunião crucial para sobrevivência da nossa espécie. Sei que muitos de vocês não faz a mais pequena ideia de que fazemos aqui, incluído eu, mas acho que só o mero facto de aqui estarmos juntos nos diz exactamente porque aqui estamos.
- EH! Deixa lá de tangas e de me confundir. Porque raio estamos aqui?Bom, eu sabia que era desnecessário explicar a razão, parecia-me evidente, mas como estavam a ser tão persistentes, e antes que a melga Margarida começasse com mais um dos seus ataques de delírio ...
- Meninos, vá lá, todos lá para dentro. Acabou o recreio, está na hora da medicação. Disse a dona do ferro velho na sua sempre repentina aparição na minha sala de reuniões. Insiste em dizer que isto é um manicómio.
Não liguem, é completamente louca.

sábado, dezembro 01, 2007

A Contadora De Histórias







































- A Contadora De Histórias E Os Dez Luminosos –




Os Putos reuniam-se à volta daquela figura afável, de perna traçada em cima da secretária não ligando às palavras que ditam que uma cadeira é uma cadeira, e uma secretária, uma secretária. Ela olhava para eles com um sorriso que não era um sorriso, era mais... um abraço, de onde saíam palavras de uma língua que só as crianças entendiam.
Reza a história que o que ela contava era mesmo uma história... pelo menos a julgar pelo olhar doce e brilhante das crianças que pareciam entender tudo o que ela dizia...

- À muito, muito tempo... bom, à algum tempo... pronto, está bem, não foi à tempo nenhum nem num tempo qualquer... mas aconteceu, realmente aconteceu, as provas estão nos buracos da Lua e na firme intenção de o Sol encontrar a tão afamada Noite... nós sabemos que o sol nunca vai encontrar a Noite, ele teima sempre em chegar no preciso momento em que ela se vai embora. Mas a história tem realmente muito tempo, foi mesmo num tempo qualquer, onde ainda nem sequer existia televisão... era muito fantástico naquela altura sem televisão, era tudo feito de sonhos e bocados de algodão.
Esta é uma história especial, muito especial digo eu, porque assisti a tudo do meu canto mais iluminado. É que o Pedro, o rapazinho desta história que vos vou contar, quando entrou na Serra da Cabreira, lá para os lados deBucos, onde ia feliz a contar todos os passos ( e toda a gente sabe que se não contar todos os passos ou os degraus de uma escada nos pode acontecer uma coisinha muito má) se deparou com um senhor muito bem vestido que cantava uns versos para alguma coisa numa moita. O Pedro, curioso como era, logo se escondeu por trás de uma árvore a ouvir o que ele dizia...:
- Do céu recorta-se um traço branco
e da cara da criança, um sorriso franco
dirigido à nuvem como lembrança
Olha os céus e as Lagartas nos beirais
Sente o vento e de novo o céu, e os Pardais
Procura algo no chão, com interesse preocupado
Fechou-o quentinho na mão
Um pardalito abandonado
Olha em volta sem saber, sequer para onde olhar
Procura decerto o ninho – Nele estará mais quentinho
e começou a chorar.
Reparou agora em mim... e olha-me desconfiado
mas ainda assim, estende-me o pequeno coitado
- Trate dele Senhor – mais pergunta que pedido.
- Farei petiz, o meu melhor, disse-lhe eu ao ouvido.
Um sorriso de alegria, assomou-se na face rosada
Foi-se embora, pois chovia.
Vinha aí trovoada....
O Pedro ofereceu um sorriso à história e encostou sonhador a cabeça à árvore, mas acordou de sobressalto quando ouviu pequenos risos vindos da moita para onde o Senhor falava. Assustou-se claro, e por causa do barulho que fez não demorou muito até que o senhor o ouvisse:
- Quem vem lá? –Disse o Senhor com uma voz de trovão que o fazia parecer bem maior do que realmente era.
- Sou eu. – Respondeu o Pedro muito assustado por detrás da árvore – estava só a ouvir essa história que o Senhor contava a essa planta.
- Planta, mas de que planta falas gaiato??? Canto o Poema aos Luminosos, eles gostam de me ouvir falar.
- Luminosos Senhor? – Perguntou o Pedro quando ouviu aquele nome dado a uma Planta, que vendo bem, nem sequer tinha luz nenhuma.
- Claro rapaz, Luminosos, ou julgavas tu que ao entrar neste verde da floresta ias chamar a uma pedra, pedra ou a uma flor, flor? Há sempre uma verdade dentro de outra verdade. Agora sai detrás dessa árvore, deixa-me ver com quem falo.
O Pedro, muito assustado, saiu do sítio onde estava, e sem tirar os olhos da moita perguntou ao Senhor:
- Quem é você senhor, e porque está assim vestido?
- Ah Ah Ah !!Quem sou eu? Ora essa, sou D. Manuel I, Rei de Portugal, nem mais.
O Pedro sabia o que era um Rei, ele próprio era um, a avó dizia-lhe sempre – És o pequeno Rei do meu quintal, o vigia destas terras muradas.
Ele não sabia o que era as Muradas, porque a avó apontava para o horizonte, onda só se via a sebe e a cerca do quintal, mas a avó devia ter razão porque ele era mesmo um rei, até tinha uma espada de madeira que lhe tinha feito o tio Adolfo no dia que fez cinco anos. E ele já tinha cinco e meio, à mais que dez dias, pensava.
- Sabe senhor Rei, gostava de escrever assim, como você fala. Quero saber as letras todas, e já sei até ao P, à pois sei, e quando chegar ao Z , que o Senhor Rei não sabe mas é a última letra do abecedámio, vou escrever muitos livros sem bonecos e com muitas letras do abecedámio.
- É abecedário, pequeno petiz.
- E daí também Senhor Rei – E olhou para a moita que por momentos parecia mexer-se.
O Rei, vendo o ar de curioso do Pedro, apontou para moita e disse:
- Aqui petiz, e por todas as terras de Basto, vivem pequenos seres que noutro tempo foram grandes Senhores. São os Luminosos, senhores da terra entre Douro e Minho, fachos de luz como pequenas estrelas e...
- Mas não vejo nada Senhor Rei.
- AH meu rapaz, claro que não, tens de acreditar antes de ver, tens de sentir a sua presença, tens de olhar com os olhos da alma....
O Pedro não entendia o que D. Manuel dizia, mas a curiosidade mais uma vez foi muito forte e retorquiu: - Mas não vejo Senhor Rei.
- Meu petiz, pequeno Pedro, perdoa o modo como falo, mas estou aqui à mais de quatrocentos anos. De qualquer modo também eu já fui criança e creio que talvez me lembre de outro modo de te explicar.
E sentou-se numa pedra a pensar.
O Pedro sabia que quatrocentos anos era muito tempo, talvez até mais de dez, mas este homem tão grande uma criança...devia estar a mangar com ele, pensou. E já começava a adormecer quando ouviu o Rei falar, em verso, como quando conversava com a moita:
-Sabes pequeno petiz
É como quando cheiras uma flor
e imaginas um jardim
Ou um pássaro migrador
E tu com olhar sonhador
também queres ser assim
Ou logo depois do Sol nascer
Quando ainda estás a sonhar
Aquela vontade de comer
o pão quentinho a acompanhar
O cheirinho a leite e a café
mesmo na casa de tua Avó
Dá vontade de te pores de pé
com a barriguinha num nó
Sabes, mesmo antes de acordar
que a comida está na mesa
É como um bocado de sonhar
Feito de doce e esperteza.
É assim que vês os Luminosos, olhos postos no lugar que eles estão, mesmo que não os vejas, respiras fundo com alento, sussurras baixinho ao vento...e dizes – LUMINOSOS-
O Pedro ficou de boca aberta quando ouviu estas palavras. Era mesmo verdade o que ele dizia. Sempre pensou que só ele sabia do Segredo Do Pequeno-Almoço, quando a avó o chamava para comer e ele adivinhava tudo o que havia para comer na mesa. Mas agora ia saber outro segredo, o segredo dos Luminosos.
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O Pedro ajoelhou-se bem perto da moita meio a medo, olhou com atenção para as ramagens tentando vislumbrar um sinal de vida, mas só ouvia o vento a passar por entre as folhas, nada mais. O silêncio era total. Que estranho, pensou, podia jurar que ainda à pouco ouvira barulho. Tinha de ser verdade, tinha a certeza que era verdade. Olhou, pelo canto do olho, o Rei, que de sorriso cúmplice fazia lembrar os dias em que o avô lhe ensinava a jogar à bola, e o Pedro era muito bom a jogar à bola, à pois era. Marcava mesmo muitos golos, se calhar mais de dez, era assim que o Rei o fazia sentir, quando marcava golos. Isto dos luminosos tinha de ser verdade, à pois tinha.
Não podia esperar mais, e num sussurro feito de vento e palavras, disse as palavras mágicas...- LUMINOSOS - .
Nada aconteceu. Nada, mas o Pedro acreditava, ele sabia que tinha de acreditar mesmo antes de acontecer, apenas tinha de acreditar, nada mais. Então, vindo do nada, como um sonho do Pequeno-almoço feito de leite e mel e algodão doce, a moita parecia ganhar vida... e fez-se luz, muita luz, pequenas bolas de luz que brincavam à apanhada entre si, tanta luz que rodeava o Pedro em cócegas e risos sussurrando baixinho seus nomes: - Augusto... Constantino... Hermígio ... D.Pedro... Inês de Castro... D. Nuno Alvares... Sá de Miranda... Bernardim... Camilo... D. António Pereira.
Parecia um eco ao Pedro quando ouvia estes nomes, como se o som não viesse apenas das pequenas luzes, mas de todo o lado, e eram dez, pensou, e até dez sabia contar, e os Luminosos eram dez....
- DEZ!!- gritou o Pedro de alegria – Vocês são as dez estrelas de Basto.
O Pedro sabia quem eram as Dez Estrelas De Basto. Claro que sabia. Tantas histórias que a avó lhe contava sempre que ai dormir, tantas lendas, a do Castelo encantado, o Tesouro dos Romanos, ou o Grito de Hermígio o Guerreiro Monge - Até ali, por S. Miguel, até ali, basto eu! . E ali estavam eles, era real... bem na frente dele... bom... à volta dele, por todo o lado e não eram pessoas, nem guerreiros, nem santos, nem poetas. Eram Luzes, eram luminosos, eram lindos.
O Pedro não conseguia se conter e ria a bandeiras despregadas enquanto os luminosos brincava à volta dele como estrelas cadentes em constante movimento e ele se lembrava das histórias que a avó lhe contava sobre as estrelas de Basto.
- Muitos foram os importantes destas terras, Pedrinho. Poetas e Guerreiros, Monges e Santos milagreiros nestas terras tão belas, Abadim, Alvite, Arco , Basto, Bucos, Cabeceiras de Basto, Cavês, Faia, Gondiães, Outeiro, Painzela, Passos, Pedraça, Refojos de Basto, RioDouro, Vila Nune, Vilar de Cunhas.
À sim, o Pedro não se esquecera, eram tantas as histórias, tantas lendas, tantas fadas e gnomos, tantas princesas e reis, tantos sonhos... mas agora era diferente, tão diferente. Realmente era diferente porque as pessoas das histórias não eram pessoas, eram Luminosos... seria possível? Claro que era, estavam ali à vista, não havia que enganar. O Pedro tinha que saber o porquê, e para saber, como o avô lhe tinha ensinado, só tinha de perguntar:
- Mas vocês não são pessoas, são luzes, são Luminosos, mas não são Pessoas.
O Rei compreendeu logo a dúvida do Pedro e disse-lhe:
- Pequeno Pedro, claro que não são , o Luminoso mais novo tem muitos anos, bem mais que os dez que sabes contar. Se os vires como realmente são ( e olhou para o Pedro com os braços estendidos e um sorriso estampado no rosto) SÃO ENORMES!!! - E chamou os Luminosos para a volta dele em conferência:
- Senhores, peço-vos que vos mostrem ao Pequeno petiz como vocês realmente são, como Guerreiros, como poetas, como Santos, como imperadores e como Reis.
O que se passou a seguir foi bem mais que um sonho, foi como se todos os sonhos do mundo se juntassem à volta do Pedro, e não eram uns sonhos quaisquer, eram sonhos feitos de Luz, eram sonhos Luminosos, eram enormes, eram tão grandes, mas tão grandes, e não paravam de crescer, até ao céu. E eram enormes senhores feitos de luz, com grandes mantos de ouro, onde as coroas que alguns usavam faziam pequenos buracos na Lua, ainda esta hoje eu vi esses buracos, olhem para a Lua se não acreditam.
O Pedro estava de boca aberta a olhar para aquilo tudo, enquanto os gigantes se transformavam em Luminosos mais uma vez e voavam em circulo em direcção ao céu sussurrando baixinho...
– Pedro...Pedro...Pedrinho... Vem para dentro, já anoiteceu, anda meu pequeno Rei destas terras Muradas.
O Pedro acordou em sobressalto quando ouviu estas palavras. Já não estava na floresta, estava no Quintal da avó, deitado de costas a olhar o céu estrelado, com todos os brinquedos à volta dele e a espada de madeira numa das mãos.
A avó do Pedro saiu à rua e olhou com ternura para ele, caminhou em silêncio e deitou-se com a cabeça encostada à dele:
- Hoje o céu parece mais estrelado, meu pequeno Rei.
O Pedro olhou um bocado para os buracos da lua e depois para as estrelas, sabia bem que a avó tinha razão, ela também acreditava mesmo antes de saber, como o Segredo Do Pequeno-almoço:
- Sim Avó - disse o Pedro - pelo menos mais dez estrelas.

sexta-feira, novembro 09, 2007

- Vá-se lá saber porquê



Houve alguém que disse que o futuro é já amanhã, e a cada dia que passa mais tenho a certeza do fundamento dessa afirmação como sendo a mais correcta do ponto de vista que a minha necessidade de que o amanhã me traga futuro.
Sei que provavelmente é apenas uma débil leitura da dualidade das palavras, mas não posso deixar de marcar essa dualidade como sendo um, embora ténue, argumento de vida.
Mas uma visão pessimista, mas infelizmente real, dessa mesma frase, também nos faz reflectir, pois o amanhã é eterno e a realidade é que a eternidade é muito tempo.
Confuso? Eu explico.
Existem as pessoas que julgam as coisas, como ver o pôr do Sol porque o entardecer está bem na frente dos olhos. Mas também existem outras que tomam consciência que do outro lado do globo está a ocorrer precisamente o contrário.
A dualidade é inerente à vida portanto.
Assim, na eventual confusão que se gera na minha mente, torna-se inevitável que a tome como normal, como sendo parte integrante de mim.
Desse modo, e apenas assim, creio ser facto que a reflexão de tudo o que se passa no nosso quotidiano não torna as coisas garantidas, de modo algum, mas sim subjectivas, na medida precisa das nossas definições quanto à sua própria existência.
É ponto assente que as nossas decisões, sejam elas quais forem, nem sempre são as mais correctas. É claro que o que seria considerado normal, no tocante a essas mesmas decisões, seria a real proposta pessoal a uma tomada de partido.
Confuso? Eu explico.
Existem pessoas que consideram o acto de oferecer flores romântico, bonito e até benéfico para pessoa que as recebe. Assim como aquelas que consideram que esse mesmo acto, além de normalmente não negarem a beleza do mesmo, acharem que se a oferta tomar em consideração as próprias flores, que inevitavelmente murcharão, sendo seres vivos desenraizados, seria assim preferivél que a oferta fosse feita em flores de papel, pois tornaria o gesto mais durável sem a lenta agonia da flor e efémero da situação.
Creio assim, a dualidade de que falo, torna-se, de um modo geral, e à medida que a vivemos, clarificada pelos próprios actos.
A procura do que está certo ou errado é constante exactamente porque essa procura pode eventualmente mudar o decurso da situação, pois o que hoje aparenta ser rotundamente certo, amanhã corre o risco de ser obviamente errado. Felizmente ou não, não há certezas absolutas.
Confuso? Eu explico.
Todos, sem excepção, cremos em algo, exactamente como os antigos acreditavam piamente que o Sol era a representação física de um Deus até descobrirem que era mais um astro entre milhares de milhões. Ou a pessoa que frequentava a igreja sistematicamente, até tomar consciência que lhe omitiram factos de suma importância para a sua própria consciência religiosa.
Com isto não quero de modo algum, fazer crer que a fé em é algo éfemera, pois creio que a fé, como o próprio nome indica, é a crença em algo maior, e necessitamos dela para obter fundamentos para a nossa procura, a nossa senda pessoal. Apenas afirmo que devemos saber que mesmo que encontremos aquilo que até então julgávamos procurar, não podemos garantir que "aquilo", seja definitivo.

quinta-feira, novembro 08, 2007

- O Sentido Das Coisas E As Coisas Sem Sentido -





No fundo, aquilo que procuro é um sentido base para cada palavra, tentando(em vão) dar-lhes um único sentido. É claro que eu jamais irei encontrar tal sentido, na realidade nem tem sentido. E com isso não me tenho sentido muito bem. Se bem que nunca me senti nem bem nem muito mal. Sempre estive num intermédio sem sentido. Tinha mais sentido se eu sentisse alguma coisa concreta, sempre igual, como o sentido das palavras sem sentido, sente-se e pronto. Mas sabemos que não é bem assim. Se deixarmos passar algum tempo sobre qualquer palavra ou frase, arranjamos sempre maneira de lhes dar outro sentido, mesmo que esse sentido não tenha sentido.
A direcção das coisas na nossa memória vai sempre em qualquer sentido, seja no de melhorar as coisas sem sentido, seja no de dar sentido às coisas.
É assim a vida, sentida. Mesmo que não tenha sentido.

A natureza das coisas, normalmente, sáo as coisas da Natureza.


28/o7/2004 - 19h31m

quarta-feira, março 08, 2006

O Raio Da Queda




Morri hoje pelas 16 horas e 45 minutos
Alguns segundos antes ouvira as últimas palavras:
- Ó Rui, cair é para baixo. – Disse alguém quando me viu suicidar em direcção ao céu, tendo como único impulso o pensamento.
Deitei-me na relva macia e deixei-me cair, para cima, nesse precipício sem fim que é o espaço.

domingo, dezembro 18, 2005

- Alterar Os Sentidos

Fiz-me silêncio
Quando me ouvi gritar
Fiz-me sacrifício
Para me ver sangrar
E senti o gosto quente na boca
E fiz-me pássaro
Voando numa dança louca
E fiz-me são
E alucinado
Rasguei meu coração
E tentei a sorte
E fiz-me morte
Ateu e cristão
E escarneci dos Deuses em oração
E esperava ansioso o dia
Feito de dor e poesia
E desfiz a noite em ilusão
Ri e choreiE fiz-me amor
E morri e mateiDoido de horror
E fiz-me marEm lágrimas por mim derramadas
E esfumei-me no arEm alvas asas roubadas
E fiz-me...Porque ninguém me fez
Não sou tudo
Nem sou nada...... Sou talvez·

sábado, dezembro 17, 2005

- Pedaços De Ser


Fiz-me silêncio
Quando me ouvi gritar
Fiz-me sacrifício
Para me ver sangrar

E senti o gosto quente na boca
E fiz-me pássaro
Voando numa dança louca
E fiz-me são
E alucinado
Rasguei meu coração

E tentei a sorte
E fiz-me morte
Ateu e cristão
E escarneci dos Deuses em oração

E esperava ansioso o dia
Feito de dor e poesia
E desfiz a noite em ilusão

Ri e chorei
E fiz-me amor
E morri e matei
Doido de horror

E fiz-me mar
Em lágrimas por mim derramadas
E esfumei-me no ar
Em alvas asas roubadas

E fiz-me ...
Porque ninguém me fez
Não sou tudo
Nem sou nada ...
... sou talvez

sexta-feira, dezembro 16, 2005

- Alterar Os Sentidos




Escrever para quê?
Se os gestos valem mais que mil palavras
E os gestos ... para quê?
Se o sentido está no segredo do olhar 
E olhar ... para quê?
Se o tacto é o segredo dos sentidos
E para quê tocar?
Podendo apenas imaginar que se toca ...

Porque escrevendo à a certeza de um amanhã?
Porque os gestos dão sentido às palavras?
Porque o olhar dá sentido aos gestos ?
Porque o tacto dá sentido ao olhar?

Porque imaginar que tudo isto faz sentido
mesmo passando revés à vida
Sei que posso trocá-la por um sonho.

Porque trocando-a por um sonho 
Sabendo-me nele real
Posso alterar o sentido dos próprios sentidos
Posso saber que não mais vou acordar
E sentir-me bem com isso

Porque um sonho, não é apenas um sonho 
É a extensão de mim e da própria realidade
São as palavras que nunca escrevi
E as coisas que nunca fiz
São os caminhos que nunca percorri

Porque um sonho é feito de momentos de algodão
Onde não se ouvem meus passos
Nem o roçar de minhas asas
Pois eu ... sou a essência do próprio sonho.