domingo, outubro 11, 2009

A Lápide





        

             A lápide dizia « Quando deixares de ver os pássaros a voar para lá do o horizonte, não te preocupes, eles continuam a voar» Acho que não tem erros, pensou. A frase havia-a copiado de um livro, encostou a foto da amiga falecida ao livro e perguntou o que ela queria na lápide. Abriu o livro e na face par e o livro respondeu. Na ímpar ,simplesmente não leu.

« Quando deixares de ver os pássaros a voar para lá do o horizonte, não te preocupes, eles continuam a voar»

Estava escrita em tinta de borracha, de modo algum adequado para mármore, confirmou consigo mesmo este facto e passou a mão ao de leve pelo trabalho, está seco e dura dois Invernos, pensou. Eram os dois pedaços de pedra de maiores dimensões que encontrara nos montes de sobras da pedreira, lisos nas duas faces, grandes o suficiente para pensar serem o que restava de uma igreja. Com a ajuda e cara de estranheza do condutor de autocarro trouxe a lápide para casa, colou um sobre o outro e pintou tudo com sobras de tinta.
E que orgulho em cada uma das suas irregularidades. Abraçou-a e levantou-a inteira.
E abraça-la e levanta-la inteira foi o que fez, vezes sem conta, enquanto subia a comprida rampa que levava ao cemitério, que nunca parecera mais íngreme. Tinha agora quatorze anos, um corpo franzino que o parecia mais ainda enquanto carregava aquele peso (ninguém lhe via a alma, essa, leve como uma pena!), o presente ideal de despedida. A amiga morrera à pouco num acidente. Com ele na escola pouco mais que uns olhares (diz-se de admiração, não sei), talvez uns desenhos e umas frases, portanto, lembrou-se, portanto, ela dizia muito portanto, mesmo antes de dar uma explicação, portanto.

« Quando deixares de ver os pássaros a voar para lá do o horizonte, não te preocupes, eles continuam a voar»

Encostou a lápide na esquina do grande portão do cemitério e espreitou. A mãe ainda estava ali, uma semana passara e a mãe ainda ali, triste e incrédula. Sentou-se em descanso e deixou o tempo correr. Uma viagem tão penosa não podia correr o risco de o não deixarem despedir-se, indagou consigo.
A mãe passou por ele, umas horas depois, rendida, ainda em lágrimas, em silêncio. Ele agarrou no mesmo silêncio, olhou para o caminho estreito entre as campas que teria de percorrer e levantou a lápide. Num esforço lento de orgulho e penitência carregou de uma só vez, encostou a pedra à campa e devagar, deitou-a. Levantou-se vagaroso, olhou em volta para lhe identificar companhia e baixou a cabeça, em silêncio.
- Portanto! (sorriu)Portanto, na segunda-feira temos teste.

Já não dava para ver depois do muro na linha do horizonte, não sei se chorava. Sei que continuou a andar.

1 comentário:

alexis disse...

Fantástico!!
Que bela gargalhada me fizeste dar depois de ler este post...
Bjinhos